Recomendamos ler e até cumprir:
ANTECEDENTES CRIMINAIS E DISCRIMINAÇÃO NO TRABALHO
Thereza Cristina Gosdal(*)
1- INTRODUÇÃO:
A contratação de empregados pela empresa pode ser
analisada de distintos pontos de vista. Do ponto de vista da empresa, o que
importa é a busca do lucro, a redução de custos e a competitividade de seus
produtos. O empregado a ser contratado deve ser aquele que, além de qualificado
para o emprego, represente menores custos e riscos. Assim, acredita a empresa
que pode legitimamente imiscuir-se em questões afetas à intimidade do empregado
e sua vida privada, na proteção de seus interesses e de seu patrimônio. Dentro
desta perspectiva se inserem os testes seletivos em que são realizadas amplas
intromissões na vida do candidato e sua personalidade (em alguns casos extremos
até com realização de mapa astral do candidato e análise da personalidade pela
letra) e generaliza-se a concepção de que é legítima a pesquisa de antecedentes
criminais. A busca desta informação sustenta-se na idéia de que a Constituição
assegura a livre iniciativa e a propriedade privada, sendo esta medida
destinada à proteção de tais valores, constitucionalmente assegurados, a par de
inserta no poder diretivo do empregador, que arca com os riscos do
empreendimento.
É certo que vivemos uma crise de valores na sociedade
atual, como muitos têm destacado em análises e comentários mais abalisados que
este, nos periódicos e demais meios de comunicação. O crime organizado nos
assobra todos os dias no noticiário e os limites entre o certo e o errado
parecem-nos embaçados pelas necessidades da sociedade de consumo em que estamos
inseridos. Assistimos com assombro filhos planejarem e executarem a morte dos
pais, para usufruírem de liberdade sem limites e dos bens que compõem o
patrimônio que lhes assegura uma vida confortável; filhos assassinarem pais,
porque a droga tornou insustentável a convivência; por outro lado, pais matando
os filhos, pelo mesmo motivo; pais atirando bebês contra carros em movimento,
num acesso de fúria. Temos a clara sensação de que algo está errado.
Sentimo-nos impotentes para alterar estes fatos e
concentramos nossa atenção numa proteção ineficaz e que, embora aparentemente
inofensiva, é extremamente danosa para aquele que sofre suas conseqüências.
Além de nos cercarmos de alarmes, grades e muros, exigimos dos candidatos a
emprego que não possuam antecedentes criminais. Numa análise superficial, nada
de errado nisto. Mas nosso compromisso não é com o senso comum, e sim com uma
análise jurídica da questão.
2- DA CONFIGURAÇÃO DE PRÁTICA DISCRIMINATÓRIA:
A igualdade de tratamento contemplada no texto
constitucional e legislação infraconstitucional, pressupõe ausência de
discriminação.
O inciso III do art. 1º da Constituição Federal de
1988 eleva a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado
democrático de direito, estabelecendo, ainda, no art. 3º, inciso IV, a promoção
do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisqueroutras
formas de discriminação, como objetivo fundamental da República. Neste último
dispositivo, inciso III, estabelece como objetivo a redução das desigualdades
sociais; no art. 5º, caput, estabelece a igualdade de todos perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza. De toda a disciplina constitucional
observa-se a vedação de qualquer forma de discriminação no emprego, o que
inclui o acesso ao emprego e a discriminação levada a efeito nos processos
seletivos.
Na legislação infraconstitucional também se encontra
expressa proibição de discriminação no âmbito laboral. A lei 9029/95 estabelece
em seu artigo 1º que “Fica proibida a adoção de qualquer prática
discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua
manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação
familiar ou idade, ressalvadas neste caso, as hipótese de proteção ao menor
previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.” Nunca é
demais lembrar que, do ponto de vista do Direito do Trabalho, os fatores de
discrimen contemplados na lei são meramente exemplificativos, já que o texto
legal proíbe qualquer prática discriminatória para o efeito de acesso ao
emprego ou sua manutenção. A limitação que se efetiva na lei 9.029/95 é quanto
à tipificação penal às hipóteses elencadas em seu artigo 2º.
Maurício Godinho Delgado conceitua discriminação como
“... conduta pela qual se nega à pessoa tratamento compatível com o padrão
jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada...”.(1) No art. 1º da
Convenção n.º 111 da OIT a discriminação é conceituada como qualquer “...distinção,
exclusão ou preferência fundada em raça, cor, sexo, religião, opinião política,
ascendência nacional, origem social ou outra distinção , exclusão ou
preferência especificada pelo Estado-membro interessado, qualquer que seja sua
origem jurídica ou prática e que tenha por fim anular ou alterar a igualdade de
oportunidades ou de tratamento no emprego ou profissão”.
Há hipóteses em que o tratamento diferenciado é
possível juridicamente, tal qual se verifica, por exemplo, nas medidas de ação
afirmativa, como as cotas para portadores de deficiência previstas no art. 93
da Lei 8213/91 e Decreto 3298/99. Hédio da Silva Júnior entende que é possível diferenciar
quando houver correlação lógica com a norma de conduta e com os valores
constitucionais. Para ele a finalidade da diferenciação deve ser acolhida pelo
direito, destinada à promoção da igualdade real.(2) Já para Luís Roberto Barroso(3) as diferenciações são “juridicamente toleráveis”
quando possuírem fundamento razoável e forem destinadas a um fim legítimo; o
elemento discriminatório for relevante e residente nas pessoas que estão sendo
diferenciadas; houver proporcionalidade entre o valor objetivado e o
sacrificado; o meio empregado e o fim buscado for compatível com os valores
constitucionais. Como exemplo de desequiparação possível traz o da contratação
de guardas penitenciários do sexo feminino para presídio feminino; ou o da
contratação de artista negro para comemoração do dia da consciência negra. No
dizer de Leonardo Wandelli: “Há discriminação, nesse sentido, quando, não
havendo uma razão suficiente para permitir ou obrigar um tratamento
diferenciado, não se outorga um tratamento igual, resultando, ipso facto,
na arbitrariedade da distinção. Ou seja, trata-se de uma distinção
negativamente valorada pela ausência de uma justificativa suficiente.”(4)
Retornando à questão da contratação de empregados,
poderíamos considerar legítima toda a aferição de qualificação e capacitação do
candidato relacionada à necessidade do serviço. Ou seja, o empregador pode
verificar tudo aquilo que venha a interferir posterior e objetivamente no
trabalho que lhe será prestado pelo empregado contratado. Isso não significa sinal
aberto a toda espécie de invasão da
intimidade e vida privada do empregado (matéria que será ,melhor analisada mais
adiante), nem a pesquisa de qualquer informação que não esteja diretamente
relacionada ao trabalho a ser realizado. Os dispositivos constitucionais e
legais anteriormente elencados impõem limite ao poder diretivo do empregador. O
empregador pode contratar quem deseja dentre aqueles que se apresentam para a
vaga oferecida, mas não pode contratar ou deixar de contratar com base em
critérios discriminatórios. Da mesma forma, não pode deixar de promover ou dar
oportunidades na empresa, ou fundar o despedimento em critérios
discriminatórios. Ao contratar ou deixar de contratar com fundamento em
critérios discriminatórios o empregador estará, em verdade, praticando abuso de
direito. A este respeito, invocamos a lição da Dra. Aldacy Rachid Coutinho,
quando analisa o poder punitivo trabalhista:
“O titular do direito assegurado pela ordem jurídica
vigente deverá exercê-lo dentro das finalidades para as quais foi reconhecido.
Estaria caracterizado o abuso de direito se o empregador, titular do direito de
aplicar sanções disciplinares, agisse em desacordo com a boa-fé, com um escopo
diverso do que deveria presidi-lo, porquanto o poder de sancionar do qual está
investido tem uma finalidade repressiva e preventiva em absoluta causalidade
com a falta em sua gravidade.
(...) Todo e qualquer direito subjetivo,
no seu exercício sofre uma limitação, à medida que esbarra na esfera jurídica
alheia; também o poder deverá ser limitado no seu exercício em relação à
finalidade do seu reconhecimento e, assim, fala-se em excesso ou abuso de
poder.”5
Sendo limitado o poder diretivo do empregador,
inclusive na contratação de empregados, aos preceitos e normas constitucionais
e legais que vedam qualquer prática discriminatória no trabalho, resta-nos
verificar se a pesquisa dos antecedentes criminais é discriminatória, para o
que será necessário adentrarmos um pouco na legislação penal e processual
penal. (...)
(*)*)Procuradora do Trabalho, Mestre em Direito das Relações
Sociais pela Universidade Federal do Pararná.
1 DELGADO,
Maurício Godinho. Proteções contra Discriminação na Relação de Emprego. In:
VIANA; RENAULT, Discriminação, p. 21.
2 SILVA
JUNIOR, Hédio. Ação Afirmativa na Constituição Federal de 1988. In: BENTO,
Maria Aparecida (org). Ação Afirmativa e diversidade no Trabalho: desafios e
possibilidades.
3 BARROSO, Luís Roberto.
Razoabilidade e Isonomia no Direito Brasileiro. In: VIANA; RENAULT, op. Cit. P.
169-226.
4 WANDELLI, Leonardo.
5 COUTINHO, Aldacy Rachid. Poder
Punitivo Trabalhista. P. 165.
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